Este livro foi concebido a partir de palestras verbais transcritas por dedicados voluntários. Os redatores do prefácio, Monge Muryo e Monja Kakuji, laboriosamente coletaram e organizaram por temas as palestras, revisaram e sugeriram acréscimos, notas e cortes necessários para evitar repetições. Sem esses trabalhos de tantas mãos a obra não existiria, agradeço profundamente a dedicação de tantas pessoas talentosas.
 

MONGE GENSHŌ

Prefácio

Taiso Eka passou três dias exposto à neve que caía sobre sua cabeça e que soterrava seus pés, em frente à caverna de Bodhidharma, sem ser notado, até que em um ato extremo cortou o próprio braço para conseguir a atenção do mestre. Huineng era um jovem analfabeto que, ao ir ao mercado da cidade vender lenha, ouviu a recitação do Sutra do Diamante e teve uma repentina experiência de despertar. Viajou, então, a pé, por quase um mês para se colocar diante de seu futuro mestre. Dōgen, em uma precária embarcação do século XIII, cruzou as perigosas águas que separam Japão e China e, de mosteiro em mosteiro, de zazen em zazen, buscou pelo verdadeiro Caminho.
 

Aqui, diante das páginas recém relidas de "Refugiados no Zen" nos demos conta de que foram necessários cerca de dois milênios e meio para que o livro ficasse pronto. O esforço abnegado de cada um dos nossos ancestrais permeia a obra. Cada decisão em busca do despertar que transformou uma vida, mudou, também, as vidas das gerações seguintes. A fumaça do incenso usado no funeral da mãe de Dōgen perfuma essas páginas tanto quanto a do que, anos depois, foi aceso nos aposentos de seu mestre, Rujing, quando “corpo e mente foram abandonados”. As lágrimas de Ananda no leito de morte do Buddha se misturam às de Angulimala, quando cansado de tanta violência, se prostrou diante daquele que o ajudou a parar. Aqui, além disso, há resquícios do sabor adocicado do arroz com leite oferecido por Sujata ao jovem faminto que havia abandonado sua família e seu reino e partido para a floresta em busca de respostas para as angústias da vida; e há, ainda, o sabor azedo da refeição que levou a adoecer mortalmente o já cansado corpo do velho Buddha.
 

Para que esse livro pudesse vir a existir, foi imprescindível, ainda, que Tiantong Rujing recebesse o jovem monge estrangeiro, que era Eihei Dōgen, como a um filho que retorna ao lar; Bodhidharma precisou, após nove anos, deixar de encarar as paredes da caverna onde, então, habitava, para reconhecer o olhar determinado do homem que tremia de frio e sangrava à sua porta; Hongren teve que ir contra todas as expectativas e dar a transmissão do Dharma a um pobre iletrado, vindo de outra parte do país, pois sabia que ali estava alguém que havia desvelado a verdadeira natureza.
 

Desde que Siddharta Gautama, sentado embaixo daquela árvore, viu a estrela da manhã, incontáveis homens e mulheres dedicaram suas existências para manter vivo o Caminho do despertar. Cada uma dessas vidas pulsa nos parágrafos a seguir. Ao pensarmos nisso, no quanto de esforço e coragem foram necessários para que o Dharma fosse preservado e chegasse até nós, nos damos conta do tamanho do privilégio que temos. Hoje, não precisamos colocar nossas vidas em risco em busca de ensinamentos, nem é necessário decifrar textos secretos, trazidos de países distantes e escritos em línguas quase que esquecidas.
 

O Dharma, talvez, mais do que nunca, está ao nosso alcance. Mas aí, diante do excesso de fontes de informação, surge um novo problema. Como saber escolher, em face a tanta oferta, o que ler ou a quem ouvir? Esse é um assunto delicado, com armadilhas ocultas. Mas um primeiro passo cauteloso podemos dizer que seja procurar um mestre reconhecido por uma instituição legítima e por seus pares. Nos colocamos, então, em posição de ouvi-lo, ou lê-lo, para descobrir o que tem a dizer. Avaliamos se seu estilo ressoa profundamente em nós. Aplicamos, por fim, os ensinamentos e constatamos seus efeitos sobre nossas vidas.
 

Aqui, diante de nós, está uma obra feita por alguém que não oferece atalhos, não seduz com recompensas e prêmios e nem ameaça com punições. Monge Genshō, em todos os seus ensinamentos, tem um grande e inequívoco foco: o despertar. Ele deixa claro que o mestre não poderá fazer o trabalho que cabe ao aluno. Ele pode mostrar o caminho, prevenir erros, ajustar condutas, mas a cada um de nós resta caminhar com os próprios pés. Porém, aos que se propõem com sinceridade a dar o primeiro passo, Genshō Sensei sempre oferece todo o suporte indispensável.
 

À nossa disposição, o autor coloca o resultado de sua própria trajetória de vida, com décadas de prática e estudo do Zen. Além disso, nos convida à possibilidade de nos conectarmos a uma corrente de ensinamentos que se iniciou com próprio Shakyamuni Buddha. Por fim, a obra é, antes de tudo, um convite à prática.
 

Todas as manhãs, os praticantes Zen tomam refúgio no Buddha, no Dharma e na Sangha, mas fazem isso somente após se sentarem em zazen, pois, como nos ensina Genshō Sensei, o Zen não é o caminho do acreditar, mas do despertar. Por isso mesmo, Dōgen Zenji afirmou que apesar de o esforço sustentado não ser algo que a maioria das pessoas naturalmente amam ou desejam, ele é o verdadeiro refúgio entre todos.
 

MONJA KAKUJI 覚慈 E MONGE MURYO 無量

Discípulos de Genshō Roshi, Julho de 2023.